segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Pesquisa da Unesp de 2006 já apontava altos índices de milho na cerveja


Poucas sensações são piores para um repórter do que ver outro publicando antes aquilo que você tinha nas mãos e demorou a publicar. Pois eis que no sábado, em pleno curso de Degustação e Análise Sensorial de Cervejas da Amanda Reitenbach, no bar Granel, começo a ver pipocar posts comentando a pesquisa da USP sobre a quantidade de milho nas cervejas, na reportagem de José Reinaldo Lopes na Folha de S. Paulo, excelente e veterano especialista em cobertura de ciências. Depois de uma semana de autoflagelação ("eu podia ter postado antes") por ter ficado atrasando, tomei coragem para ler o texto inteiro, e achei que havia algumas considerações a tecer.

A elas, portanto.

As pesquisas em direção a um método de identificação dos compostos da cerveja por meio de análise dos isótopos de carbono começaram na década de 1980, mas havia dificuldades para diferenciar o perfil de carbono da cevada do perfil do arroz. O trabalho "Determinação do percentual de malte de cevada em cervejas tipo pilsen utilizando os isótopos estáveis do carbono (δ13C) e do nitrogênio (δ15N)" de Muris Sleiman, Waldemar Gastoni Venturini Filho, Carlos Ducatti e Toshio Nojimoto, na UNESP de Botucatu, iniciado em 2002 e concluído em 2006, conseguiu dar passos além ao incorporar justamente o que a indústria alega que falta na pesquisa de agora da USP: a análise complementar dos isótopos de nitrogênio. E o que eles encontraram?
“Foram analisadas 161 amostras de cervejas provenientes de dezessete estados do Brasil. Concluiu-se que 95,6% utilizaram malte e adjunto cervejeiro (derivados de milho ou açúcar de cana: 91,3% e derivados de arroz: 4,3%) em sua formulação e outros 4,3% eram cervejas 'puro malte'. Das amostras analisadas, 3,7% eram cervejas com menos de 50% de malte em sua formulação (adulteradas), 28,6% delas estavam na faixa de incerteza, para qualquer tipo de adjunto e 67,7% apresentaram malte dentro do limite legal estabelecido.” (SLEIMAN, 2006)
Vale acrescentar que foram 60 diferentes marcas, procedentes de 63 fábricas, localizadas em 56 cidades do país. Os parâmetros físico-químicos das cervejas foram avaliados no Laboratório de Bebidas do Departamento de Gestão e Tecnologia da Faculdade de Ciências Agronômicas, e as análises da composição isotópica das bebidas, no Centro de Isótopos Estáveis Ambientais em Ciências da Vida do Instituto de Biociências.

Faixa de incerteza”, destaque-se, é o eufemismo técnico para "há risco de o consumidor estar comprando gato por lebre". Sabendo disso, vamos ler de novo, então, de outra maneira:

A análise mostrou que só pouco mais de DOIS TERÇOS das cervejas analisadas, ou seja, 108 das 161, possuíam COM CERTEZA percentual de malte até o permitido pela lei. Sobre as 53 restantes... sabe-se lá, não é mesmo? Mas os 28,6% não podem ser considerados adulterados além da famosa “dúvida razoável” dos tribunais. Os autores dizem que elas se encontram “no limite da legalidade”.

MINISTÉRIO DA AGRICULTURA APOIOU COLETA

O Ministério da Agricultura, diferentemente do que a Schincariol deu a entender, em sua declaração à Folha, conhece a metodologia há oito anos e não só a aprova como, ao saber da pesquisa da Unesp, ajudou-a na coleta das amostras em quase todos os 19 estados produtores de cerveja à época. Exigiu, porém, sigilo em relação às marcas. Portanto, infelizmente, não é possível determinar se são as mesmas marcas identificadas pela USP. Fica para a imaginação de cada um. A conclusão do estudo, pode-se dizer, foi branda e racional, como convém aos cientistas:
A fraude não é uma prática disseminada no mercado cervejeiro brasileiro que (sic) apresenta apenas problemas pontuais.” (idem)
À indústria, sempre resta o jus sperneandis (o "direito de espernear", como se diz em juridiquês bem-humorado), alegar que os estudos são falhos, que não é por aí, etc. A verificação dos isótopos é bastante consagrada, cientificamente, em diversos tipos de análise de bebidas. Se tudo o mais falhar , há ainda o mantra de que o uso de adjuntos é normal, suavizante, paladar do brasileiro, calor tropical, blábláblá.

A questão, no entanto, não é se a cerveja fica pior ou melhor com mais ou menos milho ou arroz. Está na informação devida ao público. Se a utilização de milho e outros adjuntos não impacta negativamente na qualidade do produto, como afirmam, porque não torná-la clara nas embalagens, nos rótulos? Os consumidores devem se contentar com a descrição de "Cereais não maltados" (quando aparece)?

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