sexta-feira, 7 de junho de 2013

Não se faz mais cerveja como há 500 anos - Alguns mitos e fatos da Reinheitsgebot

ANDERSON SOARES DOS SANTOS*
ESPECIAL PARA A VOLTA AO MUNDO EM 700 CERVEJAS

Ninguém no mundo produz cerveja, atualmente, seguindo a lei bávara de 1516 que ficou conhecida como Reinheitsgebot ("lei de pureza"). Porém a maioria dos fabricantes escreve em seus rótulos: "Gebraut nach dem deutschen Reinheitsgebot”, algo que pode ser traduzido de forma livre como "produzida seguindo a lei da pureza alemã". "Nach dem" também pode ser traduzido como "após a" em sentido literal.

É lógico que um assunto como esse gere bastante controvérsia, mas certas coisas devem ser ditas. O que se tem, hoje, são cervejas produzidas depois das diversas alterações da lei. As que mais chegam perto das cervejas descritas no texto de quase 500 anos atrás são as Lambic - fermentadas por leveduras selvagens. Afinal, mais de três séculos e meio separam a venerada legislação da descoberta dos microorganismos responsáveis pela fermentação.

A lei, conhecida como RHG (Nota do Editor: Considerando o tanto que simplifica a nossa vida e a dos leitores, adotaremos esta abreviatura no blog), foi re-editada algumas vezes, por exemplo, para permitir a produção de cervejas de trigo. Uma das explicações mais recorrentes é de que o uso deste cereal havia sido proibido para evitar a escassez para a produção do pão.

A versão mais atual do texto permite que sejam usados, nas cervejas de alta fermentação, adjuntos como açúcar de beterraba e açúcar invertido. Também é possível dar cor com açúcar caramelizado. São permitidos ainda o ácido lático e qualquer tipo de filtração de ação mecânica e métodos rudimentares, como a produção de “Steinbier”  que utiliza pedras quentes para aquecer o mosto.

Polêmicas a base de química industrial

O antioxidante INS 316 e o estabilizante 405, no entanto, são “não-RHG”. Há controvérsias sobre a utilização de maltes que são cultivados tendo uma infinidade de defensivos agrícolas. Alguns defendem que nesse caso a cerveja “RHG” seria feita com bio-maltes (maltes orgânicos), pois os defensivos trariam substâncias não descritas na lei original.

Não é verdade que as novas leis da União Europeia permitam que cervejeiros alemães utilizem quaisquer outros ingredientes, entretanto, eles continuam a produzir cervejas tipo exportação que não atendem a “RHG”.

A discussão sobre as implicações da lei "de pureza" chegam até ao armazenamento e engarrafamento de cervejas. Visando a reduzir os custos de embarrilhamento e engarrafamento, segundo reportagem recente do jornal Südddeutsch Zeitung, a indústria desenvolveu a ideia – sinistra – de armazenar a bebida em sacos de plástico, que ganhou alguns adeptos entre as cervejarias. Logicamente, esse tipo de material adiciona odor e sabor, o que a tornaria não “RHG”.

O debate segue acalorado na Alemanha. Este tipo de armazenamento é semelhante ao dos sucos e lácteos para crianças, porém, em volumes muito superiores. Não existe mais romantismo. O engarrafamento é feito, se for feito, no país de origem, como acontece com alguns uísques e vodcas, que são diluídos e engarrafados para atender a legislações locais.

Chamar certas coisas de cerveja é puro descaramento

Há pouco tempo, vi circulando na internet uma espécie de bebida mista, produzida, segundo os fabricantes, pela “RHG” - eles teriam produzido a cerveja nos moldes da lei e depois adicionado o suco natural da fruta. Cervejarias como Krombacher, Warsteiner e Hafferöder estão embarcando nessa.

Chamar isso de cerveja é um descaramento total, claro. Mas sinaliza uma mudança importante. Na verdade, os alemães estão consumindo a cada dia menos cervejas, e os fabricantes têm criado formas de evitar essas perdas na lucratividade. Uma delas é a produção dessas ‘coisas. Algumas cervejarias se dedicaram até à produção de (excelentes) refrigerantes naturais.

É muito comum ver na Alemanha algumas aberrações (até industrializadas), como a Colabier, mistura de cerveja com "aquele refrigerante preto", e Radler, mistura abjeta de cerveja com limonada. Eu mesmo só tive coragem de beber uma Altbierbowle’, ou seja, Altbier com adição de frutas no copo (o que a torna um coquetel). Há uma infinidade destes, como o Bananenweizen (drink com suco de banana e uma porção de weizenbier), Altbreezer (Bacardi Breezer com altbier) e Kölsch Colada (sim, você leu certo, kölsch com suco de abacaxi e coco).

Não bastasse a já usual substituição de maltes por cereais de baixo custo e qualidade, alguns destinados à alimentação do gado, a indústria cervejeira já procura métodos para fermentação em que não sejam necessárias as leveduras. Num mundo como o nosso em que o lucro é mais importante que a qualidade, onde produtos são na maioria das vezes sintéticos, vejo a importância da RHG. Se nada for feio para regular a indústria, teremos cada vez mais produtos fakes.

Para alemães, ales dos países vizinhos dão gases

A maioria dos muitos cervejeiros artesanais alemães que conheci não dá importância à RHG. Alguns, poucos, se orgulham dela. Embora se possa beber uma nut ale em alguns cantos, as cervejarias a seguem.

Pelo que se ouve do povo alemão, pode-se perceber que há também algum orgulho da RHG, e um desprezo pelas cervejas de fora do país. Chegar a chamar as ales de países fronteiriços de “pups bier” ("cerveja que dá gases"), ou ami bier – essa coisa americana que às vezes pode parecer chá de boldo devido ao amargor profundo do lúpulo, ou absinto, pelo teor alcoólico. Eu mesmo, na confraria de cervejeiros alemães que ingressei quando morava lá, e da qual ainda participo, tive minha ‘Kellerpils’ chamada de ami bier, por estar um pouquinho de nada fora do amargor adequado ao estilo.

Os alemães, em geral, bebem boas cervejas. Na maioria, ou quase, pilsners. Poucas estrangeiras, exceto da República Checa. Também não é fácil encontrar uma altbier, ou uma kölsch fora de suas respectivas cidades originais, Düsseldorf e Köln.

A partir de 1993, passou a vigorar a Vorläufiges Biergesetz, lei provisória da cerveja que estabelece pequenas alterações à RHG. Qualquer emprego de técnicas modernas descaracteriza a a bebida em relação ao respeito à lei ancestral. Estampar nos rótulos ou seguir exatamente as alterações anteriores a 1993, portanto, seria uma forma de tradição, que pode não ter nada a ver com qualidade. Afinal, invocar uma lei de 500 anos é mais atraente do que estampar na sua cerveja a seguinte frase: “Feita de acordo com a lei provisória da cerveja de 1993.”


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* Anderson Soares dos Santos é Braubruder da “Worschtmarktbrauerbubenbieratenbartei” - WBBBB, confraria de cervejeiros caseiros alemães. Fez curso de produção de cervejas com o professor João Veiga e de coquetelaria com o professor Walter Garin. Um ano depois foi estagiário de cervejeiro na Alemanha, em 2012. A produção de sua ‘kellerbier’, batizada de “Cruz de Malte”, foi assunto de reportagens em alguns veículos de comunicação alemães e brasileiros.


2 comentários:

  1. Ótimo post, sempre achei estranho uma Weiss citar a lei de pureza, o uso do malte de trigo seria um crime cervejeiro. Outro crime cervejeiro seria vender um litro de cerveja por mais de 2 pfennigs (segundo algumas estimativas 400 pfennigs, moeda que não existe mais, seriam o equivalente a um dolar hoje em dia). Algumas cervejarias brasileiras dizem que seguem à risca a lei da pureza e colocam o texto da lei original, parece até que nem leram...

    Fico desconfiado quando me dizem que uma lei de 500 anos é seguida à risca, mas seria legal se o judiciário passasse a julgar os bandidos atuais de acordo com as leis de 1500. ;-)

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  2. Pois é, Sandro, a maior parte do texto da RHG diz respeito aos preços, nada tem a ver com qualidade, como já desmistificamos em outro post:

    Cerveja boa é cerveja livre - Abaixo a ditadura da Reinheitsgebot
    http://700cervejas.blogspot.com.br/2012/11/cerveja-boa-e-cerveja-livre-abaixo.html

    E aposto que muitos que a invocam orgulhosamente não se importam o mínimo com essas questões, continuam a propagar a ideia de que se trata de qualidade.

    Afinal, se as cervejas que não são de malte de cevada fossem de "baixa qualidade", por que a casa real da Bavária reservaria para si o monopólio sobre a produção das cervejas de trigo? Não faz o menor sentido.

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