quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Especialista em linguagem cuneiforme contesta interpretação do Hino à Ninkasi como 1ª receita de cerveja da humanidade

Pessoas bebendo cerveja, de canudo, em um selo cilíndrico do 3o. Período Dinástico da Suméria (cerca de 2600 a.C.) Crédito: CDLI/Divulgação. 


"O hino a Ninkasi é a primeira receita de cerveja conhecida da humanidade".

Levanta a mão quem já ouviu/leu essa afirmação e suas devidas variações em algum curso ou livro sobre cerveja. OK, podem abaixar. Todo mundo, certo?

Pois é possível que seja, sim, a primeira receita. Mas isso está longe de ser uma verdade inquestionável ou mesmo um consenso na comunidade acadêmica.

A mística criada em torno da IPA não é exceção. As "explicações-miojo" dos supostos especialistas do mercado cervejeiro andam muito perigosas. Sob o argumento de "transmitir mais facilmente informação aos leigos", as simplificações e a transformação de suposições em fatos vão deturpando os fatos conhecidos e ignorando as amplas lacunas ainda existentes em muitas leituras científicas do passado remoto.

Como o leitor já sabe, este blog é especializado em ir aos detalhes. Descobri, assim, por exemplo, que uma das vozes dissonantes no caso de Ninkasi era ninguém menos que o matemático, filósofo e historiador da ciência Peter Damerow. Ele não concordava com a tese, e com mais uma porção de coisas que se tornaram clichês do meio cervejeiro sobre a produção de cerveja da antiguidade. Segundo o pesquisador, é vasto o terreno da especulação a respeito destes tempos dos quais restam poucas memórias. Mas, por mais bem-intencionada ou poética que seja, especulação não pode ser transmitida como fato.

"Ora, e daí? Quem é Damerow e por que sua opinião deveria ser levada em consideração?", perguntará o suposto especialista que não admite ser contrariado.

Pausa para um argumento de autoridade - e para que os leitores reflitam que há argumentos de autoridade bastante justos.

Pesquisador do Instituto Max Planck para História da Ciência, Damerow era especializado no surgimento da contabilidade e da escrita na Mesopotâmia. A partir da análise de textos arcaicos e proto-cuneiformes com auxílio de computadores, iniciada em 1982, foi um dos responsáveis - junto com o arqueólogo Hans Nissen e o filólogo Robert K. Englund - pela criação da Cuneiform Digital Library Initiative (CDLI), que serve de fonte para os pesquisadores da área, com suas reproduções em alta resolução dos tabletes cuneiformes, transcrições e seus dados catalogais.

O especialista em linguagem cuneiforme Peter Damerow, em seu escritório em Berlim. Crédito: CDLI/Divulgação

Em artigo intitulado "Sumerian Beer: The Origins of Brewing Technology in Ancient Mesopotamia" ("Cerveja Suméria: As origens da tecnologia de produção de cerveja na Antiga Mesopotâmia", sem tradução oficial em português), publicado postumamente no Cuneiform Digital Library Journal 2012, Damerow examinou o que a comunidade científica possui de evidências sobre o assunto. O resultado? Depois de 30 anos dedicado ao estudo do antigo idioma, sumério, sobravam-lhe incertezas e faltavam afirmações categóricas.

"De acordo com a interpretação representada por esta tradução, que é correntemente aceita entre a maioria dos acadêmicos trabalhando com a literatura cuneiforme, fazer cerveja começava com dois processos, a preparação do 'bappir', o termo que é deixado não traduzido, e o umedecimento e germinação do malte. O passo seguinte era a preparação do mosto, seu cozimento e resfriamento. Finalmente, o mosto era preparado e fermentado. Quando a cerveja estava pronta, era filtrada do vasilhame de fermentação para um vasilhame coletor, no qual era despejada para consumo", explicou, para em seguida, rebater categoricamente tal análise:

"Tal interpretação do Hino a Ninkasi como representando os passos do processo de fazer cerveja dificilmente é possível sem aplicar o conhecimento moderno da química cervejeira. Dado que muitas passagens do texto são obscuras, a tradução é influenciada em grau considerável pelo conhecimento da tecnologia cervejeira moderna".

Ou seja, seres humanos projetando para o passado seu conhecimento atual. Prosseguindo:

"Em particular, o texto não esclarece de forma inambígua as estrofes do hino como seguindo os estágios do processo cervejeiro em sua ordem natural. Sua interpretação como uma sequência de passos consecutivos é baseada na presunção de que os ingredientes malte (lê-se 'munu'), sun (na edição padrão também traduzida como 'malte') e 'titab' designavam três estágios sucessivos do mesmo ingrediente. Dado que em textos em Sumério Antigo malte e "titab" são registrados como ingredientes separados, tal interpretação requer a presunção posterior de uma considerável flexibilidade destas designações da própria técnica cervejeira".

Segundo Damerow, a sequência de passos da produção da cerveja descrita no poema é incompleta:

"O hino não diz como o processo de germinação foi interrompido no ponto certo. Geralmente, presume-se que a cevada foi submetida a calor e um processo de secagem foi usado para parar a germinação quando os brotos alcançassem o tamanho requerido, mas nada assim é mencionado no hino. O processo de brassagem (mashing) é indicado por 'as ondas que sobem e caem', mas não é mencionado que tal processo requer algum tipo de calor. A interpretação presume ainda que o hino descreve de forma independente uma da outra a preparação do 'bappir' e do malte, mas a questão de em que estágio do alegado procedimento 'bappir' e o malte foram misturados permanece não respondida. As opiniões a este respeito diferem consideravelmente na literatura acadêmica. Foi até sugerido que o ingrediente "dida", bem conhecido dos administrativos e mencionado também no hino (traduzido como "mosto doce"), não é um outro inrediente para adoçar a bebida como é geralmente presumido, mas precisamente a mistura de 'titab' e 'bappir', que não consta no hino, a partir do qual o mosto final para fermentação pode ter sido preparado."

Ele se estende, ainda, sobre um ponto fundamental: o significado do termo "bappir", aceito de forma, segundo ele, equivocada, como um "tipo de pão".

"O segundo ingrediente [Nota do Editor: o primeiro era "munu", aceito unanimemente como "malte"] sempre contido na antiga cerveja suméria era 'bappir'. O significado deste termo é muito discutível. O termo era representado nos antigos documentos sumérios por uma combinação de sinais consistindo de dois símbolos bem conhecidos de documentos proto-cuneiformes, mas apenas como simbolos independentes. Esta combinação de símbolos do GAR, que originalmente representava uma ração de cevada, inscrita no símbolo KAŠ, que originalmente retratava uma ânfora de cerveja, representando uma cerveja comum, tinha naquele mudado. Parece que cevada processada da mesma maneira que na produção de rações de GAR foram agora transformadas em um ingrediente básico da cerveja, substituindo a cevada grosseiramente moída".

E prossegue:

"Já foi mencionado que o símbolo GAR é comumente interpretado como o termo 'ninda', designando 'pão'. Esta interpretação do símbolo, juntamente com certas indicações de que 'bappir' era cozido ou assado, levaram acadêmicos a presumir que 'bappir' era apenas um tipo especial de pão, de forma que o termo é comumente traduzido como 'pão de cerveja'. Esta designação de 'pão de cerveja' é, no entanto, no mínimo, enganadora. O antigo ingrediente sumério 'bappir' nunca foi contado como seria de se esperar se tivesse sido, de fato, um tipo de pão. Era registrado, em vez disso, usando medidas de capacidade [volume]  assim como a cevada grosseiramente moída nos documentos proto-cuneiformes mais antigos, que foi agora substituído por 'bappir'."

O texto, na íntegra, pode ser encontrado no site da CDLI, um projeto do Instituto Max Planck de Berlim em conjunto com as universidades da California (UCLA) e de Oxford.

Portanto, na próxima vez que alguém afirmar com aquela inabalável certeza que "o hino à Ninkasi é a primeira receita de cerveja conhecida da humanidade", pode dizer sem medo:

- Há controvérsias.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Solta o pancadão de lúpulo, DJ ! Fé em Deus ! - Conheça a nova cara (e cerveja) da 2 Cabeças

Harmonizar musicalmente cerveja artesanal com rock e blues já virou clichê. Nada contra os estilos musicais, pelo contrário. Mas não seria incoerente associar a cerveja artesanal, que tantos defendem ser agregadora, etc etc, com o preconceito musical? Não são poucos os do meio cervejeiro que agem desdém diante da equação "bunda e samba" da propaganda das cervejarias de massa. Deploram o funk, ritmo carioca mais popular, que nasceu da influência do Miami Bass e do Freestyle americanos nos anos 1980, e por aqui acabou ficando com o título de uma corrente musical totalmente distinta. Mas fascinam-se com a equação "rock 'n roll e peitos" importada dos EUA. 

É neste contexto que surge a Funk IPA, que a cervejaria carioca 2Cabeças lança oficialmente nesta quinta-feira (13/2), com festa no Cerveja Social Clube, loja pioneira na Zona Norte do Rio de Janeiro, agora também dotada de bar. 

Poster criado pela cervejaria para o lançamento da Funk IPA. Crédito: Divulgação/2Cabeças

Mais do que fazer boas cervejas, a 2Cabeças tem investido pesado - metaforicamente falando, não que eles tenham milhões para gastar - em um marketing de contracorrente. Não é a toa. A escocesa Brew Dog, provavelmente a mais agressiva neste quesito no mercado artesanal mundial, é uma das referências declaradas do cervejeiro Bernardo Couto, "capataz" (como ele se denomina) da 2Cabeças. 

- A Funk IPA nasce para acabar com preconceitos, musicais ou cervejeiros, como de que a cerveja precisa ser lager e sem graça para agradar no calor brasileiro, ou que cerveja só pode combinar com Rock. Engula o seu preconceito! - afirma ele, no comunicado a respeito do lançamento.

Batidão no copo. Foto: Marcio Beck
Bernardo já havia brincado com a temática funkeira no Festival da AcervA Carioca do ano passado, em que apresentou a Saison do Naldo (em referência ao cantor de funk de mesmo nome), com a inusitada mistura de água de coco e vodka. Como a 2Cabeças já dispõe de uma IPA altamente característica, com maracujá, a receita da Funk IPA foi menos provocadora. Leve e refrescante, ela pretende ser uma India Pale Ale a ser consumida em quantidades maiores (o que se convencionou chamar de "session beer"). A contar pelas duas amostras que recebi da 2Cabeças para o "test-drink", ela cumpre com louvor a proposta. 

Dois maltes - Pale e Munich - produzem uma cor acobreada intensa, além de aroma e sabor de caramelo, bastante sutis. Turva, como era de esperar devido à ausência de filtragem, não aparenta a leveza que tem. Com pouco gás carbônico, como ocorre em muitas IPAs inglesas, produz uma espuma média, mas de longa duração, que deixa rastros nas bordas do copo. Também é leve no álcool (4,7% ABV).

Os lúpulos Zeus, Summit e Galaxy (adicionado na maturação da cerveja, em vez da fervura, como os dois anteriores) acrescentaram aromas que percebi como de tangerina, toranja (grapefruit), laranja e algo "temperado" (spicy). E, principalmente, um amargor perceptível mas agradavelmente moderado (45 IBU), que aparece desde o início do gole e permanece um bom tempo após o final.

Quem lê este blog já viu que acompanhamos o pessoal da 2Cabeças desde o começo. Recentemente, escrevi sobre como eles abandonaram a marca antiga por um "x" e mudaram todos os rótulos, durante o Mondial de La Biére. "Trocamos a marca por mais lúpulo", brincaram os cabeçudos na ocasião, referindo-se à flor que que confere amargor, aromas e sabores e é a paixão de uma imensa massa de cervejeiros - mas não deste repórter, como os leitores bem sabem.

Era o período de gestação de uma nova identidade visual desenhada pelo publicitário Bruno Couto (que não, não é irmão nem primo do Bernardo), criador do blog Eu Bebo Sim. Bruno se juntou à cervejaria no ano passado, assim como a cervejeira Maíra Kimura - que já relatou aqui no blog suas experiências cervejeiras na Grã-Bretanha.

Toda a linha repaginada com a nova identidade visual. Crédito: Divulgação/2Cabeças


Além de lançar a a Funk IPA, a 2Cabeças repaginou suas outras criações, a black IPA Hi-5 e a MaracujIPA. E lançou ainda um slogan, coisa que poucas cervejarias artesanais no Brasil se preocuparam até agora, e as poucas que tentaram pisaram na bola, caindo na megalomania ou na obviedade. "Repense cerveja", curto e objetivo, como manda a regra dos bons slogans, e com uma provocação ao bebedor. Novamente, uma sintonia com o que a Brew Dog já fez bastante, ou seja, dizer ao consumidores que esqueçam o que eles acreditam que é cerveja - ou seja, a versão industrializada sem sabor, sem aroma e sem amargor - e tentar algo novo.

Poster com o novo logo e o slogan - provocativo - da cervejaria. Crédito: Divulgação/2Cabeças