sábado, 24 de novembro de 2012

Cerveja boa é cerveja livre - Abaixo a ditadura da Reinheitsgebot


Comecei a conhecer boas cervejas, como acontece com muitos, pelas cervejas alemãs de trigo. Mais especificamente, as bávaras. Na Alemanha, onde "região" quer dizer "sabor (de cerveja) diferente", essa distinção é particularmente importante.

Além das lagers de Munique, etc, as bávaras, grosso modo, são representadas hoje em dia pelas weizenbiers, que têm como principal característica o aroma frutado que lembra banana e cravo – efeito produzido não pela adição destes ingredientes, mas pelas leveduras utilizadas na bebida.

Foi em cervejas brasileiras que vi pela primeira vez menções à Reinheitsgebot, "Lei de Pureza Alemã", ou ainda "Exigência de Pureza". Estampadas nos rótulos com inegável orgulho, que muitas mantém hoje em dia, quando já devíamos ter superado esse estágio. Mas é preciso separar a obediência a esta regra arcaica de qualquer consideração sobre a "qualidade" da cerveja.

Confundir as coisas não é crime, mas distorcê-las talvez devesse ser. Modernamente, a Reinheitsgebot é marketeada a torto e a direito como "tradição", com um ar de superioridade, usada como gancho para cativar os clientes. Virou fetiche. Só que não é por ser tradição que é necessariamente benéfica.

 TRADIÇÃO NÃO É QUALIDADE

E se, em vez do lúpulo, o cervejeiro alemão quiser temperar e conservar a cerveja com uma mistura de ervas, o gruit, como se fazia antes de 1516? Não seria ainda mais tradicional, e, portanto, de qualidade ainda maior?

Se você respondeu mentalmente "não", concordamos na realidade básica da coisa. Até porque, convenhamos, mesmo os mais refinados métodos de higiene do século 16 seriam repugnantes hoje em dia.

Se vamos ser tradicionalistas mesmo, adotemos então as lambic como cervejas favoritas, já que usam o método tradicional de sequer selecionar a levedura que vai ser usada para fermentar o mosto. O que cair é presente de Deus.

A família real da Baviera manteve, por séculos, monopólio da produção de cervejas de trigo. Isso não diz nada? Se só as cervejas que seguiam a regra dos três elementos tivessem qualidade, por que a realeza teria predileção pelas "inferiores"? A Reinheitsgebot ganhou nos anos 1990 essa alcunha, "exigência de pureza". Isso, depois de ter sido considerada pela justiça da União Europeia como prejudicial à livre concorrência.

A livre concorrência, me parece, é coisa que mesmo os cervejeiros artesanais, capitalistas por mais que sejam vistos sempre com o manto sagrado da ideologia, deveriam defender. Nem que da boca pra fora.

DOS SEIS ARTIGOS, CINCO SÃO SOBRE OS PREÇOS

O importante é que o decreto do duque Guilherme IV não traz considerações sobre a motivação do ato em seu preâmbulo, muito menos justificativas como a de que se trata de uma medida visando ao benefício do povo. Natural. Onde já se viu, afinal, um monarca ter que se explicar aos súditos?

No texto em si, não há elemento que permita a interpretação positiva que lhe atribuem. Resta a análise fria dos seis "artigos".

 Os quatro primeiros se ocupam dos preços máximos que se podia cobrar por cada tipo e quantidade de cerveja. O último volta a falar de preços. E mostra preocupação com escassez da cevada, dando a entender que o governo desapropriaria estoques privados que julgasse necessários.

Nur Geschäfte. Just business. Apenas negócios.

É no penúltimo artigo que os defensores da visão benevolente sobre essa tal "exigência de pureza" se fiam. Curiosamente, o texto não faz referência a esse conceito de pureza nem nada minimamente semelhante. Afirma que "deseja enfatizar" (indicando que isso já devia ter sido alvo de legislação) que os ingredientes "no futuro, em todas as cidades, nos mercados e no país na fabricação de cerveja eram devem ser malte, lúpulo e água".

A levedura, como todo mundo que leu um pouquinho a respeito já está careca de saber, só foi descoberta no século 19, foi adicionada posteriormente ao texto, etc etc... E estabelece ainda que a punição para quem fizer algo diferente é o confisco da mercadoria, "sem falha". Ou seja, não aplicava punição severa a quem transgredisse.

Nada nela ecoa, nem de longe, uma preocupação tão fundamental com os reles plebeus bebedores.

O texto, curiosamente, não menciona qual seria o fim da cerveja feita fora dos padrões apreendida. Pode-se apenas especular.

UMA LUZ NO FUNDO DA CALDEIRA DE MOSTO

Estabelecido que não se trata de qualidade, resta a questão filosófica. A Reinheitsgebot não faz muito mais do que limitar a criatividade dos cervejeiros. De condicioná-los a repetir que o fato de estarem usando os tais ingredientes quase místicos confira "qualidade", "pureza" à cerveja.

As meras combinações entre esses quatro elementos são capazes, sem dúvida, de gerar uma gama enorme de aromas e sabores. E daí? Por que vestir a camisa de força? O cervejeiro deve se sentir culpado se ficar com vontade de adicionar nozes e passas à sua cerveja escura? Deve se autoflagelar?

Felizmente, já estamos vendo no Brasil uma bela "contra-cultura cervejeira", em busca de experimentações e inovações. Isso se manifesta tanto nas artesanais de médio e pequeno porte, com seus lançamentos sendo reconhecidos no exterior, como nos cervejeiros caseiros, com as amostras enviadas aos concursos que têm sido realizados em diversos estados.

5 comentários:

  1. Belo texto. Quando vi o título fiquei meio "ah, q frescura, deixa as regrinhas lá", mas os argumentos são muito bons. De fato, não há porque levar aquilo mais a sério do que merece. Vivas à inovação!

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  2. Cada escola cervejeira produz sua cultura e deve ser valorizada por essa diversidade. Criticar a lei de pureza alemã (Reinheitsgebot) é como dizer que a escola cervejeira belga produz cerveja contaminada, que cerveja inglesa é choca ou que os estadunidenses usam lúpulo só pra maquiar defeitos em suas cervejas... Ou ainda q adjunto é coisa inferior de se usar em cervejas. Td bem feito e honesto é b
    em vindo e contribui. A escola alemã impõe constantes melhoras tecnológicas, é a forma de produção mais desafiadora (responde perguntas tipo: como carbonatar as cervejas sem CO2 ou açúcar invertido no priming? como filtrar depois disso sem perder o gás? como fermentar a baixas temperaturas? como conseguir um melhor drinkability?).

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    1. A criatividade do cervejeiro passa a ser quanto ao método e não simplesmente jogar td tipo de ingrediente na cerveja (sabe lá qual o efeito disso no metabolismo da levedura...) Quem não quiser seguir não é obrigado, mas concordo que usar a Reinheitsgebot como mkt é errado, ja q é apenas uma característica de uma escola cervejeira...

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  3. Caro Cadu, obrigado pela leitura e pela análise.

    A própria escola alemã, como falei, é conhecida mundialmente por um produto que está fora da Reinheitsgebot - as weiss. Portanto, até colocar a adesão à Reinheitsgebot como característica da escola cervejeira alemã é meio uma armadilha...

    Neste blog, não achamos que existam coisas acima do bem e do mal, imunes à crítica. Nem a Reinheitsgebot. Só porque é tradição, repito, não significa que seja proibido questioná-la. Mas questionamos com fatos.

    Como você disse, seguir a "lei de pureza", para quem não é alemão (no caso, era obrigação deles), é apenas uma característica. Não torna a cerveja nem melhor nem pior.

    O importante, que procurei defender, é que a cerveja pode ter esses quatro elementos se o cervejeiro assim preferir - porque só neles já existe uma riqueza imensa de sabores. Mas não porque uma lei de 500 anos atrás diz que sim.

    No mais, importante dizer que vários cervejeiros que experimentam ingredientes diferentes nas suas cervejas fazem diversos tipos de testes e procuram estudar o que vão colocar. Achei que você deu a entender que o pessoal simplesmente sai tacando qualquer coisa de qualquer jeito...

    Achei muito interessante o argumento sobre a inovação tecnológica que essa limitação incentiva. Vou procurar mais a respeito.

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    1. É simples, basta que os rótulos descrevam o que entrou na composição: Cerveja de Cevada, Cerveja de trigo, Cerveja de Milho (passo!), etc. E viva a Reinheitsgebot! Antonio Mello, 26 de janeiro de 2013.

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