quarta-feira, 20 de março de 2013

Malte, suor, lúpulo e levedura - Memórias de uma cervejeira que já foi aprendiz


Primeiro envase a gente nunca esquece: ser cervejeiro não tem glamour, mas tem recompensas. Foto: Arquivo pessoal

MAÍRA KIMURA
Especial para A Volta ao Mundo em 700 Cervejas

Com o crescente interesse do brasileiro nas cervejas artesanais, era de se esperar que surgisse uma nova classe de celebridade de nicho: o cervejeiro superstar. Ainda que essa espécie de elite ainda não seja tão claramente demarcada no mundo cervejeiro quanto em outros ramos, como a Publicidade, já existem alguns nomes nacionais e internacionais de destaque. No entanto, o olhar de quem está de fora – ou mesmo o daqueles que já estão de alguma forma envolvidos com o mercado – pode ser enganado por um suposto glamour da profissão.



Falo do mercado publicitário porque é de lá que venho. Adoradora de ar-condicionado que nunca tinha pisado num chão de fábrica até 2011, sou formada em propaganda e marketing. Até então, só havia atuado profissionalmente neste mercado. Depois de passar, tempos atrás, por estágios mal remunerados, estava no ponto de não mais ter que fazer os trabalhos menos nobres da profissão, reservados aos iniciantes.

Só que, um dia, resolvi recomeçar tudo, do zero, e mudar completamente de carreira. Fui para a Inglaterra, virei aprendiz de cervejeira e voltei para o fim da fila.

Uma pá de malte. Foto: Arquivo pessoal
O que isso significa, na prática?

Carregar sacas enormes de insumos. Pesar e moer grãos enquanto seu corpo lentamente se cobre de uma fina camada de pó de malte. Lavar tanques de fermentação por dentro e por fora. Lidar com soda cáustica e ácido peracético para sanitizar equipamentos. Coletar amostras de mosto para serem analisadas no laboratório. Passar o rodo no chão... entre outras tarefas, muitas extremamente braçais.

Almoçar? Pode, mas só no intervalo da fervura do mosto. Ir ao banheiro? Só se pedir pra alguém ficar de olho no equipamento pra temperatura não sair do nível ideal.

Descansar? Esquece. 

Trabalhei em algumas fábricas no Nordeste da Inglaterra, já que a escola onde estudei era lá. A cervejaria onde passei mais tempo fica em Sunderland. Chama-se Darwin. Talvez os leitores mais atentos lembrem-se vagamente do nome já que duas cervejas produzidas por eles figuram no livro 300 Beers to Try Before You Die!, deRoger Protz: [Nota do Editor: A cerveja também está presente no livro Great Beers - 700 of the best around the world, que serviu de inspiração para este blog]: a IPA Rolling Hitch com sua deliciosa pegada de Amarillo e a original Flag Porter, fermentada com leveduras encontradas numa carga de cervejas de um navio naufragado.

Não houve rito de passagem específico, nem trotes com os aprendizes – a não ser que eu tenha perdido alguma piada. O sotaque do Nordeste da Inglaterra é um pouco difícil no começo, e mesmo os meus colegas americanos às vezes ficavam sem entender uma ou outra instrução. Olhando em retrospecto, acho que os chefes até se divertiam um pouco mandando a gente entrar nas tinas de mosturação quentes para tirar o bagaço com uma pá, ou que a gente se espremesse para entrar nos tanques de fermentação munidos de balde e esponja e limpássemos a sujeira lá dentro.

A compensação vinha depois, nos intervalos das funções, na forma de cervejas bebidas à temperatura ambiente, e no gargalo.

Martelando keg, de leve. Foto: Arquivo pessoal
Por sorte – ou não –, não percebi nenhum tipo de pudor em me pedir para fazer trabalhos mais pesados, mesmo sendo mulher e possivelmente menos forte fisicamente que os outros aprendizes, todos homens.

Na York Brewery, me deram uma luva grossa e me mandaram levar barris grandes cheios de bagaço para a rua. Os fazendeiros da redondeza, que usam os restos de malte para alimentar o gado, olhavam vez por outra meio desconfiados para a novata japonesa arrastando barris na calçada, mas não ouvi nenhum comentário negativo.

Na High House Farm Brewery, entrei num tanque de fermentação para limpar, saí ensopada de ácido peracético e ninguém pareceu preocupado. Ok, de fato, nenhum dos cenários em que imaginei minha pele caindo ou se enchendo de bolhas se concretizou.

É, enfim, um trabalho duro e cansativo. No final do dia, porém, você ajudou a fazer litros e litros de cerveja – e isso dá uma satisfação enorme. A parte bonita, ou seja, mostrar sua criação pro mundo e ser reconhecido, não vem se não houver a parte do desgaste físico e mental da concepção e fabricação do produto.

Da próxima vez que olhar, com a devida admiração, para um cervejeiro superstar, lembre-se que não há sucesso que não venha de muito suor. De alguma forma ele chegou lá, e certamente não foi (só) bebendo cerveja.

6 comentários:

  1. Muito legal! Deu até vontade de por a mão na massa também! :D

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  2. Não fique só na vontade, Amanda !! Tem que partir pra mão na massa também ! Temos certeza que você não vai se arrepender... =D

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  3. Que texto maneiro! Parabéns Maíra, muita coragem enfrentar outro país, outra língua, preconceitos! Queremos ver vc com a mão na massa aqui! Beijão!

    Gustavo Renha

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    1. Ô Gustavo, obrigada! Pode deixar, já tô esquentando a cozinha pra colocar a mão na massa :) Beijos!

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  4. Puxa... Me vi em cada brassagem que fiz no meu apartamento, mesmo limitado, algumas outras atividades mais tranquilas a serem feitas e estávamos sempre lá cuidando da hora certa de colocar os lúpulos, ou de recircular o mosto.
    Aí vem a parte da limpeza que convenhamos não é a mais agradável do procedimento e toda cautela pra manipular a cerveja antes de engarrafar.
    Quando no final você ouve o primeiro tsssssssss e o colarinho sobe como que pra te parabenizar por todo esforço.
    Isso sim é um prazer!
    Parabéns Maíra. Muito sucesso pra você sempre...

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